Prestes a fazer 80 anos, o sambista lança livro, estuda Relações Internacionais e vai ser enredo da Unidos do Peruche, em São Paulo
Martinho daVila não se lembra da última vez que teve uma dor de cabeça. Não se apega às dificuldades nem às lamentações da vida. Já viu e viveu muita coisa do alto de seus 79 anos – sendo 50 deles dedicados à música. “É muito tempo, né? (risos). Não é a minha praia. Tenho dificuldade de recordar. Nesses 50 anos de carreira fiz tudo do jeito que queria”, reconhece. Um dos maiores cantores e compositores do país é ainda estudante de Relações Internacionais e publicou recentemente seu 16º livro, Conversas Cariocas, reunindo crônicas escritas no período em que foi colunista do jornal carioca O Dia. “Tentava escrever sempre como se estivesse conversando, só que sem a resposta. Ficava imaginando o que a pessoa iria perguntar.”
Desde que se casou, há 24 anos, com Cléo Ferreira, 46, mãe de seus dois filhos mais novos, Martinho foi mudando aos poucos. A vida de excessos (e a boemia!) ficou para trás. “Ela não bebe, não fuma, não gosta que eu beba muito, controla”, conta. Ao todo, o sambista é pai de oito, tem ainda 10 netos e uma bisneta. Prestes a completar 80 anos, Martinho deixou para os amigos os encargos para as comemorações, em fevereiro próximo. Shows, é claro, não devem faltar. Por ora, sabe que será homenageado no enredo da escola Unidos do Peruche, no Carnaval de São Paulo. “Vou desfilar”, orgulha-se, concluindo: “Hoje não tenho medo de nada, nem da morte”.
O compositor está lançando seu 16º livro, porém não se considera um escritor
Não sou escritor... “Que é aquele cara que gosta de escrever, todo dia. Mas prefiro isso a falar. Não é uma função, ação prazerosa. É uma tortura. Tem o compromisso com a verdade, com a palavra e com o pensamento que se expõe. Só é bom quando o livro está pronto.”
Uma forma de homenagem “Bolo a história na cabeça, às vezes em tópicos. Todo mundo deveria escrever para deixar alguma coisa registrada para o futuro, sobre a família... No livro Memórias Póstumas de Teresa de Jesus (2003), queria que todo mundo conhecesse a minha mãe. Ela era analfabeta, mas as pessoas letradas queriam ouvir a sua visão. Alegria (filha caçula) não conheceu a avó, então saiu a história da família Ferreira.”
Autobiografia “Muita gente fala que Kizomba, Andanças e Festanças (1992) é uma autobiografia, mas não é (risos). Não preciso escrever uma, sem contar que outras pessoas já escreveram. Talvez pudesse para pós-morte, é interessante. Nem tudo a gente pode falar agora (risos). Mas não penso em fazer.”
Estilo preferido “Talvez seja o romance. Fui escrever por causa de uma entrevista que vi e disseram que escritor mesmo era o romancista. É mais complicado, tem de ter a capacidade de inventar.”
“Escrever não é uma função, ação prazerosa. É uma tortura. Tem compromisso com a verdade, com a palavra
e com o pensamento que se expõe”
Marido apaixonado “Fiz crônicas para Cléo. Tem uma de seu aniversário que, por acaso, não saiu. Falei que ela aparecia em várias partes, mas queria aquela (risos). Depois a gente publica de novo – dá para fazer um outro livro desse. Tem muitos escritos que fiz para jornais, revistas, prefácios de livros...”
Aluno de relações internacionais “Não queria fazer nenhum alarde. Hoje, não se sabe o que vai viralizar na internet. Estou no sexto período, sou aluno ouvinte, fui para a faculdade para adquirir conhecimentos. Isso não é muito usado no Brasil, fiz prova para saber se tinha capacidade de acompanhar a turma. Tenho a mesma carga horária e faço as tarefas.”
Vivência “Já pratico isso há tempo (ele é embaixador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), mas não tenho tempo para ficar fazendo provas. Já atingi meu objetivo, ia pedir para o reitor para sair. Agora, vou ficar até o final do ano. Entendi a importância das relações internacionais no mundo. Ao mesmo tempo, faço um estudo sobre o mundo universitário. Posso escrever um livro sobre isso.”
O mesmo DNA musical “Vejo os meus filhos seguindo o caminho musical naturalmente. Sempre fui da opinião de que o artista não deve fazer com que seus filhos sigam (a profissão), por ser uma vida instável. A arte é uma coisa que se deve fazer paralelamente. Mas, de outra maneira, os fui colocando (nesse meio). Então, sou um pouco culpado de eles estarem aí. Tenho sorte de serem talentosos, o que é raro. Mas existem famílias de médicos, advogados...”
Casado há 24 anos, Martinho deixou a vida de excessos de lado por amor
Versão avô “É tudo camarada, amigo, não nos vemos com esse negócio (sobre os netos). Não sou a favor, nem contra que me chamem de ‘Vô’ (risos).”
Sem medos “Depois de um certo tempo, a gente acaba pensando na morte. Hoje não tenho medo de nada, nem dela. Não cultivo. Gostaria de ter a graça de não ficar doente muito tempo. A morte é um descanso (risos). Ter medo de acidente não te livra dele. Ando de avião, de carro, já pulei de parapente...”
Devagar, devagarinho... “É bom se cuidar um pouco, faço só o necessário. Tenho os joelhos fracos, já sofreram abalos, então preciso manter as coxas e os glúteos firmes. Quando estou mais relaxado, preciso subir escadas e sinto os joelhos, tenho de dar uma malhadinha. Tudo de pouco não faz mal, até rezar demais faz mal. (risos)”
Em modo off-line “As pessoas não conseguem sair do telefone. Consigo me desligar. Uso para telefonar e só. Não tenho WhatsApp – isso é uma praga. Tenho Facebook, Instagram, mas tudo terceirizado. Respondo os e-mails, que quase ninguém usa mais.”
A sua Vila Isabel “Tomava conta daquilo tudo, depois fui soltando, fico mais out. Quando tem um problema maior, me chamam, aplico minha diplomacia.”