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Opinião: Retrato de outro tempo, 'A Vida da Gente' não envelheceu tão bem ao ser reprisada dez anos depois

Protagonizada por brancos privilegiados, novela é retrato que incomoda diante da diversidade do país; leia

Leandro Fernandes Publicado em 02/06/2021, às 09h55

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Elenco de 'A Vida da Gente' - Divulgação/Globo
Elenco de 'A Vida da Gente' - Divulgação/Globo

Existe sempre um risco em reprisar qualquer obra mais antiga: nem tudo envelhece bem. Valores que eram senso comum há dez anos hoje são bem mais questionáveis, decisões narrativas popularmente aceitas podem não fazer mais sentido algum. A Vida da Gente é um caso gritante de uma novela que parece ter vindo de outro mundo.

A novela de Lícia Manzo foi um super sucesso em 2011, com uma trama dolorida a respeito de um drama familiar aparentemente impossível de resolver. Tem tudo o que uma boa novela precisa: um conflito sem lado totalmente certo ou errado, personagens bem construídos e diálogos que aproveitam a profundidade do drama com um elenco, num geral, excelente.

Só que dez anos se passaram e algumas coisas ficam gritantes ao assistir novamente. A primeira delas é a quase ausência de personagens que não sejam brancos na trama: são apenas dois negros e zero asiáticos. Os dois personagens são Maria (Neusa Borges), cozinheira que se torna sócia da protagonista Manu (Marjorie Estiano) e Matias (Marcello Melo Jr.), um motorista na casa dos ricaços interpretados por Paulo Betti e Regiane Alves.

Nenhum dos dois tem uma trama própria e ambos ficam sempre como acessórios dos personagens brancos que os cercam. Todo o movimento narrativo que eles protagonizam é girar em torno da vida de outras pessoas, sendo inclusive, no caso de Matias, alvo de assédio sexual por parte da patroa.

A trama de assédio sexual é, aliás, bastante ilustrativa. Durante toda a trama, Matias está apenas nos arredores das tramas de Cris (Regiane Alves), a patroa, e Lorena (Julia Almeida), a namorada. É mencionado que ele faz faculdade, mas depois de um salto de seis anos ele segue sem terminar o curso. No início, o rapaz é apenas o jardineiro e filho de Maria. Depois, passa a ser namorado de Lorena. E depois, alvo das atenções da patroa, o que lhe custa o namoro pois ele se envolve de fato com a ricaça. Em nenhum momento Matias tem qualquer tipo de poder dentro da própria história - é jogado para um lado e para outro, sempre orbitando os personagens ao redor.

E não é só na questão racial que A Vida da Gente soa como uma novela de época: todo o núcleo principal da trama é composto por ricaços, pessoas cujas dificuldades e dramas soam irreais e inalcançáveis. Em um determinado diálogo, Celina (Leona Cavalli) se queixa que a maior parte das crianças vive sob criação de babás e folguistas em vez dos próprios pais. Que maior parte seria essa?

Essa onipresença de personagens endinheirados é e não é coisa do passado: normalmente quando as novelas trazem protagonistas pobres, eles acabam enriquecendo no decorrer da história. Há exceções notáveis, incluindo Amor de Mãe, que manteve a protagonista firme na mesma posição social do início ao fim. Mas a completa ausência de um núcleo sequer que mostre pessoas que não vivem no luxo, ou pelo menos na chamada classe média alta, chama atenção.

Nada disso tira o valor da novela, que foi sucesso não por acaso, mas também evidencia que, há apenas dez anos, tudo isso parecia aceitável não só para quem a produziu mas para o público. Outras tramas que foram reprisadas são ainda mais gritantes nessas questões todas, incluindo Fina Estampa e Império, por exemplo, novelas antiquadas em todos os sentidos.

Talvez o que choque mais é que, em 2021, tão pouca gente fale a respeito dos problemas em A Vida da Gente, focados em uma discussão sem sentido de estar do lado de uma protagonista ou da outra. Afinal, se há algo de atemporal na novela é justamente o drama central, entre Ana (Fernanda Vasconcellos) e Manu, ambas heroínas e vilãs da própria história.